O que mudou no Le Monde em 75 anos de existência? Perguntámos a Jérôme Fenoglio, diretor do vespertino.
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Em 1944 podíamos ler na primeira página da primeira edição do Le Monde que : “a missão deste jornal é garantir aos leitores informações claras, verdadeiras e, na medida do possível, rápidas e completas”. Esta ambição mantém-se?
Sim mantém-se, nada mudou. Temos de manter incondicionalmente estes quatro pilares, são os nossos vetores desde o início. Garantir estes princípios é fundamental para que um jornal que defende uma informação de qualidade possa funcionar e sobretudo para que possamos continuar a trabalhar de maneira independente. É necessário para que possamos levar informações ao leitor, e para que estas tenham um interesse subjacente. Temos de ter em conta que se trata do trabalho de uma redação independente que subsiste a todas as formas de pressão, independentemente de todas as pressões económicas, políticas, e de tudo o que possa hoje alterar a forma de produzir informação.
Em 75 anos, o mudaram os desafios?
A identidade da redação não mudou. Temos uma redação cujas raízes e modo de funcionamento são associados à sua independência, à sua liberdade, a uma forma de fazer jornalismo de grande qualidade. Isso não mudou. As maneiras de fazer este jornalismo evoluíram e os suportes através dos quais fazemos este jornalismo – tanto quanto a maneira como os leitores têm acesso à informação – mudaram radicalmente. No entanto a identidade e o que implica ser um jornalista do Monde, assim como a importância consequente desse jornalismo para a sociedade, não mudou.
Em 75 anos publicaram mais de três milhões de artigos?
Três milhões de artigos… se o diz, deve ser isso, não os contei (riso)! Estamos efetivamente próximos dos três milhões de artigos, porque houve uma muito grande produção que não para de acelerar. Quanto mais avançamos na era digital, mais artigos escrevemos. Temos menos artigos publicados em papel, mas mais artigo nos diferentes suportes, o que nos leva a uma grande produção que está associada ao facto de termos sempre defendido uma redação generalista, que trabalha sobre todos os temas de atualidade e que é composta por muitos jornalistas. Hoje somos quase quinhentos jornalistas, o que faz com que a produção editorial seja intensa.
Disse-Nos que a velocidade de produção foi um dos maiores mudanças nos últimos anos. O escrever é escrever menos bem?
Temos de saber organizar o tempo dos jornalistas. Não podemos pedir a todos para escrever mais rápido porque se o fizéssemos, isso implicaria de facto “escrever menos bem”. Não queremos de maneira nenhuma que os nossos jornalistas escrevam menos bem. Temos de nos organizar, razão pela qual temos jornalistas que são especializados no “tempo imediato”, no “breaking news”, no “tempo real”. Estes jornalistas têm de reagir evidentemente nos suportes digitais – porque é aí que se espera o imediato. Trata-se da mesma temporalidade que uma rádio procura. Estes jornalistas – que fazem um trabalho muito interessante, que são muito reativos ao mundo que os rodeia – escrevem muito rápido, o que os leva a uma adrenalina muito particular, que existe mais do que antigamente no nosso média. Estes jornalistas permitem-nos de defender o tempo de investigação dos outros jornalistas. Precisamos de continuar a ter jornalistas que continuem a investir todo o tempo necessário para fazer uma grande investigação, procurando todos os interlocutores, tendo a oportunidade de fazer reportagens em lugares distantes, tendo o tempo de escrever. Este tempo de que falamos, não podemos de todo restringi-lo, porque é o que faz a qualidade de um jornal, a qualidade dos artigos, a qualidade da relação com o leitor. Isso nunca pode mudar. Não podemos fazer com que a maior parte dos jornalistas sejam mais rápidos. Devem trabalhar tão bem quanto antes e ter tempo. É esse luxo – o tempo de fazer bem o nosso trabalho – que tentamos dar-lhes e que é levado consequentemente aos nossos leitores.
Evoca os suportes digitais. Falamos de uma era digital, que vem ocupar o lugar do papel e das frequências radiofónicas, das salas de cinema… será que nos últimos 20 anos nos apercebemos desta chegada da era digital?
Sim, não foi nenhuma surpresa. A chegada do digital foi analisada, por vezes, de maneira caricatural, o que nos fazia acreditar que seria uma ameaça. Para Le Monde não foi uma ameaça, foi um golpe de sorte – foi mais o que nos salvou do que o que nos matou. Na realidade a nossa profissão é o jornalismo… não é a de trabalhar nas impressões, nem de vender papel… gostamos muito do papel, continuamos a defendê-lo, mas é somente uma das diferentes maneiras de ler um artigo do Monde. Hoje em dia todas as outras formas de chegar à informação por meio digital nos permitiram de alcançar um público muito mais jovem e que nos era muito mais distante. Isso é extraordinário, porque revolucionou o nosso modelo económico e permite-nos hoje em dia de ter o nosso maior número de assinaturas de sempre. Em 75 anos, nunca tivemos trezentos mil assinaturas… duzentas mil assinaturas graças ao digital, às quais se somam cem mil subscritores para a versão papel. O digital permite-nos fazer melhor o nosso jornalismo e alcançar mais leitores, mais público. Este lado positivo, penso que não o previmos… houve uma grande depressão no início dos anos 2000, em que dizíamos que “as formações perderam todo o seu valor”, “a profissão de jornalista acabou”, “os grandes jornais vão fechar as portas”, “não haverá mais profundidade, tudo será ligeiro”, “a imprensa morreu”. Não é o caso: a imprensa está viva, o contexto atual é frágil mas o futuro existe porque o digital nos permitiu de fazer melhor jornalismo e de alcançar mais leitor.
Se pensarmos no diário 20 minutes, ele alcança quatro milhões de leitores por dia. Le Monde alcança dois milhões. O que é que isto representa?
Cada diário tem o seu público, ao qual se dedica e para o qual trabalha. Temos de assumir que somos um jornal e site elitista, que visa um público mais educado e tentamos contribuir para essa mesma educação: tentamos despertá-lo cada vez mais para os grandes problemas da sociedade e do mundo que nos rodeia. Sempre houve jornais cujo público-alvo é mais vasto, que alcançam mais leitores porque têm uma maneira de tratar a informação mais direta. Na minha opinião não devemos medir a importância de um jornal e do papel que ele tem pelo número de leitores.
Não foi o digital que mudou o que quer que seja nesse sentido, muito pelo contrário: hoje o digital permite-nos pensar e fazer melhor o nosso trabalho, alcançando um público que nos teria lido menos, há alguns anos. É uma ponte que leva ao rejuvenescimento do nosso público-alvo, portanto é uma sorte. O Le Monde é um jornalismo exigente, feito de escrita, de complexidade, de nuances… não pretendemos que o digital nos leve ao alcance de todos, contudo facilitou o contacto com um grande número de leitores.
Trata-se de jornal de referência que podemos encontrar em 120 países, no mundo.
Hoje em dia podemos encontrá-lo em todos os países do mundo. De qualquer das formas, com o digital, podemos ser lidos em todo o lado… exceto se formos censurados, porque infelizmente existem países onde não podemos ser lidos.
Como, por exemplo?
É o caso da China, onde atualmente não temos acesso, porque publicámos há alguns anos investigações que não agradaram ao poder chinês. Desde então o nosso acesso está bloqueado na China. Fora estes exemplos – que felizmente são exceções – estamos disponíveis em qualquer sítio, nos países do mundo inteiro, qualquer que seja o seu nível de desenvolvimento… Para os que têm telefones menos sofisticados, podem ler edições mais simples do nosso jornal: é o caso, hoje em dia de Le Monde Afrique, que é uma edição que pode ser lida em telemóveis mais simples que os outros, com edições menos pesadas a carregar, e que dá a qualquer pessoa acesso a um excelente jornalismo, de grande qualidade e de referência, sobre todos os países africanos. Estamos acessíveis em todo o continente africano e é importante fazer um tipo de jornalismo que vá interessar estes países e que defenda os valores que veiculamos: os valores da democracia e o desenvolvimento justo e partilhado por todos os países do planeta.
Hoje em dia as pessoas procuram informação gratuita. No Le Monde, os vossos artigos de livre acesso são mais procurados e lidos do que os outros?
Acreditámos durante muito tempo que a gratuitidade ia provocar o desaparecimento da subscrição e dos nosso leitores que pagam a leitura… Não é de todo o caso. Como lhe disse, temos subscrições que aumentam de dia para dia, mas também é verdade – e é um dos meus combates – de querer guardar uma percentagem de acesso gratuito, o que nos permite de estabelecer uma ponte com leitores que nos são mais distantes, que não estão dispostos a pagar ou a subscrever o jornalismo que representamos… mas que talvez um dia estarão dispostos a fazer. A gratuitidade permite-nos ter um público infinitamente mais variado. É evidente que se publicarmos um artigo gratuito ele alcançará mais leitores do que um artigo exclusivo para os nossos assinantes. É evidente. Cabe-nos a nós escolher o que reservamos para os nossos subscritores: artigos mais aprofundados, que não são necessariamente o que procuram os nossos leitores que não pagam. O tipo de jornalismo que podemos dirigir aos leitores que procuram uma leitura rápida, mais dirigida para “breaking news”, permite dar-lhes acesso a uma informação que pode ser importante ou não, a um evento de uma grande amplitude ou não… Para aprofundar a questão, temos de passar pela assinatura. É necessário fazer coexistir os dois: sou contra a ideia que o Le Monde seja unicamente pago, porque penso que temos de assumir uma missão pública, lutar contra as más informações, estar presentes no Facebook e nas redes sociais, nos locais onde somos gratuitos e acessíveis e onde podemos desentrelaçar o que é real do que não o é, denunciar o que é falso ou manipulado… é um papel que devemos continuar a desempenhar, de maneira gratuita.
Tem sido um tempo desde que você tem estado a trabalhar contra as notícias falsas… curiosamente não usa este termo, mas “a confirmação se a informação é verdadeira ou não”.
Não utilizo o termo « fake news », prefiro evitá-lo desde que o presidente dos Estados Unidos o utilizou e o manipulou. Prefiro falar de « notícias falsificadas », porque na realidade não se trata apenas de notícias falsas. Qualquer pessoa se pode enganar e publicar uma notícia falsa: acontece aos outros mas também nos acontece aqui no Le Monde, não somos infalíveis. Mas aquilo de que estamos a falar, é de notícias que são deliberadamente falsificadas, transformadas para manipular o público, para o levar ao encontro de teses ou teorias que são totalmente falaciosas e em qualquer caso de figura perigosas. Isto faz necessariamente parte do papel dos jornalistas, de lutar contra a falsificação, de poder dizer: “isto é verdadeiro jornalismo, isto não o é”, “aqui estão a manipular-vos, ali podem fazer confiança” e de aumentar assim o sentido crítico dos leitores. Fico feliz quando os leitores criticam, também os artigos do Le Monde, porque isso quer dizer que cumprimos com o nosso papel: o público tem um direito de resposta, de fazer o seu próprio julgamento e apurar o seu sentido crítico, desafiando por vezes o que escrevemos. Temos de ensinar o público a suspeitar de todo tipo de publicação… infelizmente há muitas coisas falsas e falsificadas que circulam nas redes sociais. Estamos empenhados nesta luta, razão pela qual criámos uma parceria com o Facebook que começa a dar frutos e permite lutar contra estas notícias falsificadas. Levamos a cabo, em paralelo, ações de sensibilização nas escolas, colégios e liceus em França, onde nos dirigimos enquanto jornalistas voluntários para defender a prática de leitor e do que é preciso saber para ser um bom leitor.
Falava há pouco de financiamento. Como é que se financia hoje em dia um jornal como o Le Monde?
Temos de ter… Na minha opinião, o segredo passa por um modelo económico equilibrado. Haverá sempre uma parte importante do financiamento – que acho saudável – que vem da “publicidade”, que deve ser um complemento. A maior parte da receita deve vir dos leitores e aí, a sorte que temos, é que o digital – contrariamente ao que seria expectável há alguns anos, não leva à gratuitidade – é hoje em dia um público que tem vontade de ter uma ligação directa e permanente com o seu jornal preferido, com o média que prefere e temos nesse sentido a sorte de ter cada vez mais de assinaturas e consequentemente uma produção editorial proporcional à produção de um valor económico. Como temos mais subscrições, cada ano temos mais dinheiro que nos permite de financiar o jornalismo. Mas que fique claro… não devemos fazer jornalismo esperando uma atividade profissional muito rentável… o jornalismo não leva à riqueza! O jornalismo é uma função importante num espaço democrático. Luto para que a redação do Le Monde encontre um equilíbrio financeiro, porque é importante para a sua independência. Se começarmos a estar em deficit, esta redação será submissa a todos os poderes que a rodeiam. Não pretendo com isto dizer que o jornalismo será muito rentável no futuro, não isso o que procuramos. Aquilo que procuramos é a independência, o equilíbrio financeiro e ter cada vez mais leitores que possam pagar pela informação. Verdade seja que o que estamos a demonstrar aqui – e não somos os únicos, há muitos jornais no mundo inteiro que dão prova do mesmo, graças à subscrição digital… o New York Times, o The Guardian cada vez mais, le Financial Times. Há muitos jornais no mundo que, como nós, estão a criar um modelo económico que funciona.
Fala de independência e uma questão que me parece importante vem do facto de Le Monde ser um dos raros jornais em França a proteger as suas fontes anónimas: avançam muitas vezes com informação com fontes anónimas. Protegem as vossas fontes de informação e conseguem fazê-lo. Como pode explicar-nos isso?
Espero que não sejamos os únicos a fazê-lo porque normalmente é a regra: um jornalista deve proteger as suas fontes, portanto espero que a maior parte dos jornais o faça. Temos muitas regras que vão nesse sentido, porque é importante. O jornalismo não existe sem fontes, sem informação… e essas informações provêm nomeadamente de fontes, de pessoas que têm interesse a que a informação circule e ainda bem… porque se todas as pessoas estivessem em silêncio, não haveria jornalismo e não viveríamos verdadeiramente numa democracia. Temos de proteger as pessoas que são suscetíveis de dar informações, assim como a verificação necessária dessas mesmas informações, para as podermos perspetivar e eventualmente contradizer. A fonte é essencial e se não a protegemos, não protegemos o que faz o interesse mesmo do nosso trabalho. Temos regras muito precisas nesse sentido, que não levam sempre à anonimização, depende… temos muitos processos diferentes. Mas de maneira geral, é verdade que é necessário poder ter as informações sem que possamos identificar a pessoa que nos deu as mesmas. Faz parte das regras elementares do trabalho jornalístico.
…é preciso ter em conta a força do media que pode fazê-lo…
Claro, é necessário… Sim, é preciso ser um media suficientemente respeitado e impressionante para que ninguém – nem polícia, nem justiça, nem poder político – seja suscetível de nos visitar todas as manhãs saber quais são as nossas fontes. É um combate, é preciso resistir, lutar, por vezes escrever editoriais para proteger este princípio. Trata-se de um princípio fundamental do jornalismo livre, tal como ele é praticado desde a democracia. É um combate. Espero que jornais no estrangeiro sejam suficientemente poderosos para continuar a defender este princípio que é essencial. Na minha opinião, sem ele não existe informação livre e as fontes não sentem a liberdade de falar sem pensar nos perigos inerentes: a segurança ou ameaças suscetíveis. Se não podemos garantir-lhes essa segurança, geramos um grande problema.
Ouça aqui a entrevista com Jéréme Fenoglio, em sua totalidade,