As diferentes correntes evangélicas parecem beneficiar-se, em algumas partes do mundo, e notadamente na América Latina e na África, de uma influência crescente. Neste artigo, Jean-Jacques Kourliandsky, diretor do Observatório da América Latina da Fundação Jean-Jaurès, com sede em Paris, aborda a gênese e a influência do evangelismo político – que ele designa de “nacional-evangelismo” – na América Latina e trata das consequências desse considerável aumento.
1. O EVANGELISMO NO CENTRO DE UMA REVIRAVOLTA POLÍTICA
A democracia, seja no Brasil, seja na América Latina, ou em qualquer outra parte do mundo, está em crise. Seu domínio repousa cada vez menos na razão, no debate e na argumentação, e cada vez mais na manipulação do inconsciente. A democracia é minada por pressões exercidas pelas forças econômicas dominantes, que entram em contradição com aquelas, por princípio, reguladas politicamente por cidadãos iguais em direito. Não há nada de novo aqui. No entanto, a economia global, que oferece oportunidades privilegiadas às “minorias” conectadas aos fluxos financeiros transnacionais, aprofunda a contradição.
2. O DIREITO E EVANGELISMO (NEO)PENTECOSTAL
Esse tipo de aliança não tem nada de excepcional. Daniel Ortega, na Nicarágua, ganhou as eleições se alicerçando nos setores religiosos. A Comissão Evangélica para a Promoção da Responsabilidade Social (CEPRES) conclamou os fiéis, em outubro de 2011, a votar na Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Em 2018, no México, Andrés Manuel Lopez Obrador integrou, em sua coalizão eleitoral, o Partido Encontro Social (PES), de matriz evangélica.
Os acordos estabelecidos no passado entre os partidos de esquerda e os evangélicos repousam sobre interesses conjunturais convergentes. Na eleição presidencial brasileira de 2014, por exemplo, Dilma Rousseff estava em busca de apoio. Ela participou da cerimônia de inauguração da gigantesca réplica do Templo de Salomão, construída em São Paulo pela Igreja Universal do Reino de Deus, e obteve a benevolência dessa igreja após engavetar um projeto de lei que regularia a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). Os evangélicos da Nicarágua apoiaram Daniel Ortega porque ele estava engajado em dar a eles um status equivalente àquele da Igreja Católica, o que de fato fez desde sua chegada ao poder em 1979⁹. Essas convergências pontuais garantiram a cada uma das partes o benefício imediato que elas procuravam. O tempo do divórcio vem rapidamente na sequência, em razão de uma incompatibilidade essencial entre os seus respectivos projetos.
O pontificado de Karol Wojtyla, João Paulo II, papa conservador e anticomunista, arrefeceu a ofensiva de Washington contra os defensores da Teologia da Libertação e da Igreja Católica na América Latina ao adotar um posicionamento crítico em duas instruções, de 1984 e 1986¹², por parte da Congregação para a Doutrina da Fé, coordenada pelo então Cardeal Ratzinger e futuro Papa Bento XVI, também conservador e anticomunista, condenando a utilização de “ferramentas marxistas” pelos padres da Teologia da Libertação. Apesar do arrefecimento do apoio de Washington, os evangélicos latino-americanos perseveraram, com eficácia, graças ao apoio de fundações privadas e de missões evangelizadoras norte-americanas, e devido também ao dinamismo das igrejas locais latino-americanas, que rapidamente souberam convencer teologicamente seus adeptos do caráter sagrado do dízimo. Muito rapidamente, emergiu a evidência de uma contradição mais profunda.
Essas particularidades facilitaram a convergência com as forças do mercado e seus representantes, o que permitiu a essas denominações ampliar sua influência e ganhar um peso eleitoral em diferentes parlamentos latino-americanos. Em 1986, foi criada no Brasil a Frente Parlamentar Evangélica, composta de deputados advindos de diferentes partidos, e que conta atualmente com 91 membros. Alhures, os evangélicos entraram em parlamentos com suas próprias forças – como no Peru, com o pastor Humberto Lay Sun e seu partido, Restauração Nacional¹⁵.
Esse discurso polarizador interdita todo diálogo inter-religioso. No Brasil, mas também no Haiti, os adeptos dessas igrejas não somente denunciam como demoníacos os cultos afro-americanos¹⁷ mas também, frequentemente, os agridem fisicamente. Inversamente, manifestam uma forte solidariedade religiosa e política com Israel, por analogia da Israel bíblica à Israel contemporânea. A Igreja Universal do Reino de Deus, no Brasil, adotou em seus templos uma arquitetura inspirada naquela das sinagogas. Essas igrejas obtiveram dos governos da Guatemala, de Honduras e do Paraguai – este último durante alguns meses – o deslocamento de suas respectivas embaixadas em Israel de Tel Aviv para Jerusalém, seguindo assim a decisão anunciada pelos Estados Unidos de Donald Trump, sob a pressão e a influência das mesmas denominações. O novo presidente do Brasil anunciou também durante sua campanha eleitoral a intenção de deslocar a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, decisão parcialmente confirmada apenas com a transferência de alguns serviços. A embaixada mantém Tel Aviv como residência principal. A Confraria Evangélica de Honduras (CEH) fez o comentário seguinte para felicitar a decisão do deslocamento da embaixada, tomada pelas autoridades de Tegucigalpa: “nós aplaudimos a decisão do Estado de Honduras […] que reconheceu Jerusalém como capital de Israel. […] Para nós, não há dúvida. A história bíblica e universal demonstra que Deus abençoa toda a nação que bendiz a nação de Israel. […] Rezai pela paz de Jerusalém (Salmo 122:6)” ¹⁸.
Essa intolerância religiosa vai ao encontro de uma outra, aquela de respeitar um código moral rígido, código este mais ou menos exigido de acordo com as denominações. Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, eleito em 2016 prefeito do Rio de Janeiro, reduziu o subsídio municipal concedido às escolas de samba. O carnaval é considerado um espetáculo impróprio por sua denominação. Qualquer que seja o país, todas as igrejas (neo)pentecostais e seus partidos políticos declaram-se publicamente contra o casamento de pessoas do mesmo sexo. Fabricio Alvarado, candidato evangélico costa-riquenho do Partido Restauração Nacional, que obteve 40% dos votos no segundo turno da eleição presidencial de 2018, expressou essa oposição do seguinte modo: “Nós somos contra o Estado laico, porque aqueles que o defendem, na realidade querem um Estado ateu. A Costa Rica enviou aos políticos uma mensagem clara: não toquem na família, nem nas nossas crianças. Nós não queremos saber nada da agenda LGBT, pró-aborto, nem da ideologia de gênero. Que esta eleição seja nosso referendo sobre o casamento que deve ser entre um homem e uma mulher”¹⁹. Desse modo, eles souberam remobilizar com sucesso o componente machista da cultura latino-americana tradicional, que, aliás, não poupou Cuba, onde o legislador foi obrigado a retirar, em janeiro de 2019, pelos resultados advindos do “grande debate” local sobre a reforma constitucional, o artigo relativo ao casamento igualitário entre pessoas, seja qual for o seu sexo.
Esse nacional-evangelismo conquistou notáveis espaços de poder nesses últimos anos. Jair Bolsonaro, presidente do Brasil desde 1º de janeiro de 2019, ainda que nascido católico, se fez rebatizar por um pastor evangélico em 2016. Jimmy Morales, presidente da Guatemala, formou-se no Instituto Evangélico da América Latina. Fabricio Alvarado, citado acima, foi o primeiro candidato evangélico que chegou ao segundo turno da eleição presidencial da Costa Rica. Na Venezuela, em 20 de maio de 2018, um candidato evangélico desconhecido, Javier Bertucci, do Movimento Esperança pela Mudança, obteve 10,8% dos votos válidos. Notemos que, na Colômbia, os evangélicos mobilizaram-se a favor do ex-presidente Álvaro Uribe e de seu partido Centro Democrático para defender o “não”, ou seja, a posição contrária ao acordo de paz com a guerrilha das Farc, tema que foi submetido a referendo em 2 de outubro de 2016²⁰.
Os defensores dessa ideologia político-religiosa realizaram um encontro fundador em 8 de dezembro de 2018 em Foz do Iguaçu, no Brasil. Essa reunião de cúpula, qualificada de conservadora por seus organizadores, reuniu participantes de toda América Latina sob a autoridade política de um dos filhos de Jair Bolsonaro, Eduardo, e sob a direção moral do “guru” do presidente brasileiro, e próximo de Steve Bannon, Olavo Luiz Pimentel de Carvalho.
Afinal de contas, uma observação ainda que superficial da última eleição presidencial brasileira não pode ignorar a forte presença de referências bíblicas no discurso do candidato que venceu. A referência a “Deus” aparece logo na primeira página de seu plano de governo²²: “Deus acima de tudo”. No fim da mesma página, podemos ler uma citação do evangelho de João: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Na noite do escrutínio, no dia 28 de outubro de 2018, na ocasião do anúncio de sua vitória, as primeiras palavras de Bolsonaro fazem referência a Deus: “Eu não estive sozinho. Eu sempre senti a presença de Deus”. Promessa feita: governar com a Constituição em uma mão e a Bíblia na outra…
Essas palavras podem ser compreendidas como uma piscadela para os pastores (neo)pentecostais que apoiaram sua candidatura. Apesar de ter sido criado em uma família católica, foi a partir de sua visita a Israel, em 2016, que ele lançou sua campanha eleitoral. Em 12 de maio de 2016, com efeito, ele foi batizado nas águas do rio Jordão por Everaldo Pereira, pastor da Assembleia de Deus e dirigente do Partido Social Cristão (PSC). Filmada, a cerimônia foi transmitida no YouTube. Essa escolha é reveladora da centralidade de Israel para os evangélicos neopentecostais. O deputado Jony Marcos, membro do Partido Republicano Brasileiro e da bancada evangélica, em 7 de dezembro de 2017, expressou essa opção da seguinte maneira na BBC Brasil: “Jerusalém é, desde sempre, a cidade santa dos judeus e dos cristãos”. O programa eleitoral de Jair Bolsonaro integrou os elementos constitutivos da doutrina neopentecostal, em particular no que concerne à educação e à família, e à condenação do que eles chamam de “ideologia de gênero”.
O apoio evangélico (neo)pentecostal lhe foi garantido a partir daquele momento. Numerosos pastores conclamaram seus fiéis a votarem naquele que difundia mensagens inequívocas em “defesa da família”. Embora o capitão não fosse inicialmente seu candidato, a Igreja Universal do Reino de Deus colocou seu canal de televisão, a Record, à disposição de Jair Bolsonaro.
As primeiras medidas do presidente Jair Bolsonaro são coerentes com seus engajamentos de campanha. O convidado principal de sua posse em 1º de janeiro de 2019, o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, confirmou o lugar central ocupado por Israel para os evangélicos neopentecostais. Três dos ministros que Bolsonaro escolheu são portadores de uma ideologia nacional-evangelista: os ministros das Relações exteriores, da Educação e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a pastora Damares Alves, desde a sua posse, tem assinalado que pretende trabalhar a partir de uma orientação “terrivelmente crist㔲³. Seu colega da Educação, o colombiano Ricardo Vélez, foi recompensado por tentar impor aos estudantes a palavra de ordem da campanha eleitoral de Jair Bolsonaro, “Deus acima de tudo”. Seu sucessor, Abraham Weintraub²⁴, compartilha as mesmas convicções. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, colocou a diplomacia brasileira, em 2 de janeiro de 2019, em seu discurso de posse, sob o apadrinhamento bíblico de João. “Eu gostaria”, diz ele, “de começar com uma frase […] absolutamente fundamental: Gnosesthe ten aletheian kai he aletheia eleutheosei humas, conhecereis a verdade e a verdade vos libertarᔲ⁵.
Essa disputa para vencer as eleições, ocupando o inconsciente das maiorias, engajou as correntes sectárias do evangelismo com criatividade e com grandes recursos financeiros. Para além do Brasil, essa disputa concerne tanto os países latino-americanos²⁶ como outras regiões do mundo, em particular a África²⁷. Essa progressão de denominações neopentecostais prospera com a crise da democracia, com a erosão da laicidade e com a instrumentalização dos medos. O controle dos meios de comunicação de massa e a utilização militante das redes sociais facilitam a difusão de narrativas persuasivas, diminuindo a importância e o rigor da razão democrática, a necessidade do diálogo e da argumentação. Todas essas coisas visam preservar as hierarquias socioeconômicas por meio de golpes de Estado com consequências humanas e materiais destrutivas, sob o risco de se aprofundarem as fraturas sociais artificialmente mascaradas. Dada a acumulação prolongada, essas fraturas darão à luz, no futuro, a explosões sociais vulcânicas.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatoire de l’Amérique Latine e pesquisador junto ao IRIS – Institut de Relations Internationales et Stratégiques, responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe.
Tradução e revisão realizadas por Simone Garavello Varella, Pâmela da Silva Rosin, Joseane Bittencourt e Luzmara Curcino. Texto publicado originalmente em francês, em 21 de junho de 2019, no site da Fundação Jean-Jaurès: Penser pour Agir. Seção Internacional, Paris.
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