Inteligência artificial pode democratizar o acesso à Justiça? (Foto: PhonlamaiPhoto via Getty Images)
O programador Joshua Browder, em 2015 aos 19 anos, criou um sistema de inteligência artificial (IA) com linguagem natural que, a partir das perguntas e justificativas do autor do processo, determina a melhor forma de contestar multas de estacionamento gerando automaticamente os documentos legais. Com base na tecnologia Watson-IBM, o chatbot “DoNotPay”, disponível em NY e UK, é um serviço jurídico pro Bono (totalmente gratuito). De 2015-2017 atendeu 250 mil casos, anulando cerca de 4 milhões de dólares em multas. Trata-se de mera ilustração da transformação em curso na advocacia
Para dar conta do volume de documentos envolvidos nos processos jurídicos, em 2012, surgiu a TAR ― Technology-assisted review ―, considerada a primeira aplicação de IA na prática legal. Sua função é organizar, analisar e pesquisar conjuntos de dados com ganhos de eficiência de 50 vezes os métodos tradicionais, em rapidez e precisão, reduzindo custos e tempo de revisão do ESI (Electronically Stored Information).
O primeiro “Robô Advogado” foi o Ross. Convergindo tecnologias de pesquisa on-line com processamento de linguagem natural da IBM-Watson, Ross lê mais de um milhão de páginas legais por minuto. Projetado por uma equipe diversificada de profissionais, seu propósito é “mudar o mundo, oferecendo assistência prática à grande maioria das pessoas em risco legal que não tem acesso à justiça”. No momento, disponível somente nos EUA (em breve, globalmente).
Como forma de testar os sistemas inteligentes, em 2018 vinte experientes advogados americanos (com passagem pelo banco Goldman Sachs, Cisco, e grandes escritórios legais) foram confrontados com o algoritmo de IA “LawGeex”. O desfio era rever cinco NDAs (Non-Disclosure-Agreements/acordos de confidencialidade), identificando os riscos em cada contrato legal. O sistema de IA alcançou 94% de precisão versus 85% dos advogados (na média: 94% para advogados com maior desempenho, e 67% para advogados com menor desempenho), com uma diferença de tempo de 26 segundos para IA contra 92 minutos para os advogados!
Esses avanços, como nos demais setores da economia, trazem enormes benefícios à sociedade pela redução de custos e aumento de eficiência (maior precisão, menor tempo); ademais, democratizam o acesso à defesa legal de um contingente majoritário da população que não tem condições de arcar com os custos da advocacia tradicional.
+ A sintonia do livro “1984” de Orwell com as ameaças do século XXI
Simultaneamente, contudo, esses mesmos avanços têm efeitos negativos sobre o mercado de trabalho; segundo a consultoria McKinsey, 23% do trabalho atual do advogado médio já pode ser substituído por sistemas inteligentes. Esse cenário afeta particularmente os jovens advogados: a automação inteligente tende a eliminar as tarefas rotineiras na prática legal, funções em geral exercidas por jovens associados, ou seja, os candidatos ao primeiro emprego. No Brasil o cenário é mais preocupante: são cerca de 1,2 milhão de advogados no país, 1.210 cursos de direito e 900 mil estudantes (no mundo são 1.100 cursos de direito, menos do que o total do país).
Indicadores das economias desenvolvidas dão uma noção do que está por vir: 100.000 empregos legais serão eliminados no Reino Unido até 2025 (Fonte: Deloitte); o banco americano JPM automatizou 360.000 horas de trabalho de advogado no último ano; mais de 36% dos escritórios de advocacia americanos, e mais de 90% dos grandes escritórios de advocacia (mais de 1.000 advogados), estão usando ativamente a inteligência artificial. No Brasil, estamos nos primórdios: apenas 2 à 4% do meio jurídico está usando IA (Fonte: Alexandre Zavaglia Coelho, presidente da Future Law).
No campo da ética, emergem inúmeras questões a serem equacionadas: como garantir a precisão, legalidade e justiça das decisões de IA? os advogados serão responsáveis por negligência ao confiar em sistemas inteligentes que cometem erros? os advogados serão responsabilizados por negligência ao não fazerem uso de IA que exceda as capacidades humanas em certas tarefas?
O futuro da advocacia foi um dos temas do 1º Seminário Novas Tecnologias e Sistemas de Inteligência Artificial, promovido pela TRF 3º Região em 6 de dezembro último. Os palestrantes – Desembargadores, Juízes, Conselheiros, Auditores e Acadêmicos – se dividiram entre alertar sobre a eminente ameaça de eliminar a profissão do advogado até a extinção da própria Justiça, e o reconhecimento da inexorabilidade da adoção das tecnologias de IA (“porque é o que as pessoas querem”). A unanimidade foi sobre a premência de atualizar os profissionais do setor, advogados e juízes, e adequar as grades curriculares dos cursos de direito ao novo mercado. Um ponto de partida é acompanhar o site “Artificial Lawyer: Changing the Business of Law”.
*Dora Kaufman é pós-doutora COPPE-UFRJ (2017) e TIDD PUC-SP (2019), doutora ECA-USP com período na Université Paris – Sorbonne IV. Autora dos livros “O Despertar de Gulliver: os desafios das empresas nas redes digitais” (2017), e “A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana?” (2019). Professora convidada da FDC e professora PUC-SP.
Gostou da nossa matéria? Clique aqui para assinar a nossa newsletter e receba mais conteúdos.