Presidente da US Soccer renuncia depois de argumentos descaradamente machistas em processo contra jogadoras

O presidente da USSF (conhecida também como US Soccer, a Federação Americana de Futebol), Carlos Cordeiro, renunciou ao cargo nesta sexta-feira. O dirigente assumiu a culpa por argumentos machistas usados em um processo movido pelo time feminino, que pede pagamentos iguais ao masculino. No documento que a US Soccer se defende, alega que os homens precisam de maior habilidades e atributos físicos em relação ao time feminino, além de terem uma responsabilidade maior. Com a repercussão negativa entre jogadores do time masculino, jogadoras do time feminino, patrocinadores e com o público em geral, o dirigente decidiu pela demissão. Ele será substituído interinamente por Cindy Parlow Cone, ex-jogadora, que fica no cargo até fevereiro de 2021.

Carlos Cordeiro comandava a instituição desde janeiro de 2018, quando substituiu Sunil Gulati, de quem era um dos vice-presidentes anteriormente. Ele assumiu a responsabilidade pelos argumentos usados pela defesa da US Soccer em processo que as jogadoras da seleção feminina movem pedindo pagamento igualitário em relação à seleção masculina. Os argumentos usados no processo geraram revolta, especialmente entre as jogadoras.

O advogado da US Soccer, Brian Stolzenbach, usou argumentos que soam inacreditáveis vindo de uma federação que se beneficia de um time que é o principal do mundo em sua categoria. De acordo com a lei nos Estados Unidos, as mulheres devem estabelecer que seu trabalho é suficientemente igual ao dos homens para que prevaleça o chamado “Equal Pay Act”, que diz que uma mulher, fazendo a mesma função de um homem, não pode receber menos por isso, o que chamam de “trabalho igual”. Esse conceito refere-se ao trabalho que é aproximadamente igual em termos de esforço, habilidade e responsabilidade.

Por isso, o argumento das jogadoras é que as responsabilidades centrais dos homens e mulheres jogadoras da seleção nacional são basicamente os mesmos: todos devem permanecer na melhor forma física e devem ter um desempenho alto. As jogadoras também ressaltaram que o que Jay Berhalter, que deixou recentemente o cargo de chefe de operações da US Soccer, testemunhou que os dois times possuem responsabilidades similares.

Stolzenbach, então, empilha argumentos sobre audiência do time masculino em relação ao feminino, além de potenciais ganhos em premiação do time masculino serem maiores. Usa esses dados para argumentar que “os fatos demonstram que o trabalho dos jogadores do time masculino carrega mais responsabilidade dentro da US Soccer que o trabalho das jogadoras do time feminino, de um ponto de vista do Equal Pay Act”.

Os argumentos seguintes enveredam claramente pelo caminho da misoginia. O advogado da US Soccer argumenta que os jogadores do time masculino enfrentam condições de trabalho mais exigentes e, por isso, possuem trabalhos fundamentalmente diferentes – e, por consequência, mais difíceis. Ele segue: argumenta que os jogadores do time masculino enfrentam “hostilidade dos torcedores adversários” em jogos fora de casa, particularmente no México e na América Central ou Caribe, que “não tem comparação” com nada que as jogadoras do time feminino vivem.

O advogado termina o texto do documento com um argumento que poderia ter sido tranquilamente tirado dos anos 1950, mas foi escrito em 2020: defende que a “ciência” confirma que há níveis diferentes de velocidade e força necessários para os jogadores do time masculino em relação ao time feminino. E vai adiante: diz que “não é um estereótipo sexista” reconhecer esta distinção.

Os argumentos, obviamente, foram prontamente refutados pela parte das jogadoras, um time que é muito mais popular no próprio país que o masculino e muito mais bem sucedido também: tem quatro títulos de Copa do Mundo das oito disputadas até aqui. Rebate o argumento da hostilidade dos torcedores adversários ressaltando que o time feminino é campeão do mundo e, por isso, enfrenta um desafio ainda maior por ser o time a ser batido.

E se lembrarmos bem, a seleção feminina venceu a França, dona da casa, em uma Copa do Mundo, eliminando as anfitriãs, uma das favoritas. Sem falar em jogos contra a Inglaterra, que se tornou um dos melhores times do mundo, além dos jogos contra o Brasil, que foi rival na primeira década dos anos 2000. O México, aliás, citado como um ambiente hostil aos homens, tem um campeonato feminino forte e com estádios bastante cheios. Portanto, não é exatamente fácil para as americanas jogarem em solo mexicano quando necessário. O desafio não é menor: o time feminino que é melhor que o masculino, comparativamente dentro da sua categoria. É possível até argumentar que a responsabilidade do time feminino é maior, jamais que é menor.

Os argumentos geraram críticas não só das jogadoras, mas também de executivos de futebol no país. A vice-presidente, Cindy Parlow Cone, que assumiu o lugar de Cordeiro interinamente, reagiu fortemente contra os argumentos usados. O comissionário da MLS, cargo máximo da liga de futebol masculina, também foi duro ao falar sobre os argumentos, discordando veementemente.

Os patrocinadores também se manifestaram contra os argumentos e a favor das jogadoras. Coca-Cola, Anheuser Busch (que faz a Budweiser), Procter & Gamble e Volkswagen divulgaram comunicados apoiando as jogadoras, depois da divulgação dos argumentos usados pela US Soccer no processo. Cordeiro divulgou comunicado na quarta-feira pedindo desculpas e informando que a federação mudaria os advogados envolvidos no caso. A situação foi condenada também pelos jogadores do time masculino.

“Eu expressei para o presidente da federação em termos inequívocos, o quão inaceitáveis e ofensivas são as declarações apresentadas no processo”, disse Don Garber, comissionário da MLS. Ele é também membro da diretoria da US Soccer, além de presidente da Soccer United Marketing, empresa que cuida do marketing tanto da MLS quanto da US Soccer. “Aquelas declarações não refletem meu ponto de vista pessoal, nem reflete a visão das famílias da MLS e Soccer United Marketing. Eu pretendo tratar desta questão imediatamente com o conselho de administração do futebol dos Estados Unidos”, disse o dirigente nesta quinta-feira.

Cindy Parlow Cone, eleita vice-presidente da US Soccer no mês de fevereiro e ex-jogadora, deu declarações fortes sobre o caso. “Estou ferida e machucada com o que foi falado no processo da USSF”, escreveu a ex-jogadora no Twitter. “Essa questão significa tanto para mim, e mais amplamente para homens e mulheres e, ainda mais importante, para pequenas garotas e garotos que são o nosso futuro. Eu rejeito as declarações preocupantes e continuarei trabalhando para criar um caminho melhor adiante”.

Os jogadores do time masculino dos Estados Unidos também foi muito duro nas críticas à US Soccer pela forma como lidou com o caso. “Os argumentos da federação no tribunal são 100% consistentes com as posições e valores de longa data do comando da entidade”, diz o comunicado divulgado pelos jogadores.

“Os esforços para culpar os advogados para apaziguar patrocinadores da federação indignados ressaltam a falta de responsabilidade e outros problemas maiores na US Soccer. A estratégia legal de rebaixar a seleção feminina e suas conquistas é consistente com a abordagem geral em lidar com os jogadores das seleções nacionais”, afirma ainda a nota divulgada pelos jogadores da seleção masculina.

Diante de todas as críticas, a pressão dentro da própria US Soccer e dos patrocinadores, Carlos Cordeiro decidiu se demitir. Houve uma reunião na instituição na noite de quinta, e que foi definida a saída do dirigente. O anúncio veio nesta sexta. “Foi um imenso privilégio servir como presidente da US Soccer”, afirmou Cordeiro em um comunicado no Twitter. “Minha primeira e única missão sempre foi fazer o que é melhor para nossa federação. Depois de discussões com a diretoria, eu decidi renunciar, com efeito imediato”.

Cordeiro disse que não revisou os documentos com os argumentos criticados que foram enviados para o tribunal pela US Soccer na segunda-feira e assumiu toda a responsabilidade por isso. “Se eu tivesse feito isso, eu teria me oposto à linguagem que não reflete a minha admiração pessoal pelo futebol feminino e nossos valores como organização”, disse o dirigente.

A porta-voz das jogadoras da seleção feminina dos Estados Unidos, Molly Levinson, foi dura na crítica e comemorou a decisão. “Embora seja gratificante haver um protesto ensurdecedor contra a flagrante misoginia da USSF, a cultura e as políticas sexistas supervisionadas por Carlos Cordeiro foram aprovadas há anos pelo conselho de diretores da USSF. Essa instituição deve mudar, apoiar e pagar jogadores e jogadoras igualmente”, disse Levinson.

Na quarta-feira, a seleção feminina entrou em campo pela She Believes Cup contra o Japão (venceu por 3 a 1) e as jogadoras entraram em campo vestindo o uniforme de treino do avesso, de forma a esconder o escudo da US Soccer. Mas ainda mostrava as quatro estrelas, símbolo das suas quatro conquistas de Copa do Mundo.

Depois do jogo, Megan Rapinoe já tinha feito críticas severas à postura da federação no caso. “Nós sentimos que esses são alguns dos sentimentos ocultos que eles têm há muito tempo”, disse a jogadora, referindo-se ao documento apresentado pela federação. “Mas ver isso sendo usado como um argumento, uma flagrante misoginia e sexismo como argumento contra nós, é realmente decepcionante”.

“Mas eu quero dizer, é tudo falso. Para todas as garotas por aí, todos os garotos por aí, que assistem a esse time, que querem estar neste time, ou apenas vivem seus sonhos, você não é menos por ser menina. Você não é melhor por ser um garoto”, continuou Rapinoe.

Cordeiro foi eleito em janeiro de 2018, depois do então presidente, Sunil Gulati, perder força política. Venceu outros sete candidatos e concentrou 68,6% dos votos em uma terceira fase da votação. Curiosamente, uma das suas promessas de campanha era tratar justamente do pagamento igualitário, como ele chegou a defender em entrevista à ESPN. “Nós claramente precisamos trabalhar em direção ao pagamento igualitário entre as seleções nacionais”, disse, à época.

Cindy Parlow Cone assume interinamente a presidência da US Soccer até que seja chamada outra eleição, em fevereiro de 2021. Considerando como foi a última disputa, é possível que vejamos muitos candidatos, incluindo ex-jogadores. Será que esses dirigentes vão aprender? Talvez com uma mulher no comando, ainda que interino, ajude a começar a mudar essa questão.

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