Clube da “cidade do coronavírus”, Wuhan Zall escapa da Espanha e pode voltar para casa após 45 dias de exílio

Sexto colocado no último Campeonato Chinês, o Wuhan Zall é o principal clube da cidade de Wuhan, onde surgiram os primeiros registros do coronavírus na virada do ano. Quando o surto se ampliou na região e a população recebeu as primeiras ordens de confinamento, o elenco já havia desembarcado na Espanha para realizar seus treinamentos de pré-temporada. Desde o fim de janeiro, a equipe permaneceu num exílio forçado, sem poder retornar à sua cidade. No entanto, com a declaração do epicentro da pandemia na Europa e o controle da situação na China, o Zall finalmente ganhou permissão para viajar de volta a Wuhan.

Antes de desembarcar na Espanha, o Wuhan Zall havia iniciado os seus treinamentos para a nova edição do Campeonato Chinês em Guangzhou – cidade a cerca de mil quilômetros da região de Wuhan. Assim, o elenco não foi submetido diretamente ao confinamento e pôde chegar à Andaluzia em 29 de janeiro, uma semana depois das primeiras ordens das autoridades sanitárias na China. A presença da equipe gerou discussão e temores entre a população local, especialmente em um estágio no qual se sabia bem menos sobre o covid-19.

Todos os 50 membros da delegação foram testados e nenhum exame deu positivo ao vírus. Três jogadores se juntaram posteriormente ao grupo e, após permanecerem em quarentena, também deram negativo. As autoridades espanholas se pronunciaram publicamente e tranquilizaram a população quanto à saúde do Wuhan Zall. Ainda assim, o clube precisou lidar com os receios. Os primeiros amistosos previamente marcados terminaram cancelados, ante a recusa de Krasnodar e Europa Point em encarar o representante de Wuhan.

Desde então, os membros do Wuhan Zall precisaram seguir treinando, sem muitas perspectivas de voltar para casa. O Campeonato Chinês teve o início de sua temporada suspenso, sem previsão de retomada naquele momento. Enquanto isso, jogadores e funcionários lidavam com a distância de suas famílias, bem como com a incerteza quanto ao estado de saúde de parentes e amigos. Ao todo, 14 atletas do elenco são originários da própria cidade de Wuhan. Neste ínterim, a avó de um jogador faleceu por causa do coronavírus.

“O medo do desconhecido obviamente sempre existe. Eu entendo as pessoas que ficaram reticentes com o time chegando à Espanha. Mas, com o tempo, ficou claro que não havia problema”, declarou o técnico José González, à Associated Press, no início de março. “Eu sinceramente tento falar o mínimo possível sobre o vírus com os jogadores. Eles já estão falando sobre o assunto o tempo todo, em seus quartos, com os parentes em Wuhan. Não quero tratar sobre isso cada vez que eu os vejo. Tento fazer os treinos mais divertidos, assim posso vê-los sorrindo um pouco”.

Entre os estrangeiros no elenco do Wuhan Zall, estão dois brasileiros: os atacantes Léo Baptistão (de carreira principalmente no futebol espanhol) e Rafael Silva (que passou alguns anos no Japão antes de se transferir à China). Ambos estavam em férias no Brasil, antes de se juntarem ao elenco, e não passaram por Wuhan após o início da pandemia.

“É como uma pré-temporada eterna. Treinamos de manhã e de tarde. Temos tratamentos, videogame, conversamos uns com os outros, assistimos jogos, e quando temos tardes livres saímos para comer ou para tomar um café. Tudo soma. Conviver, conhecer a situação de cada um. Sabemos que temos companheiros lidando mal (com a situação), e isso cria um vínculo positivo na hora de ir a campo”, contou Baptistão, em entrevista à Agência EFE, no início de março. “Ganhamos folgas, mas acho que isso não importa para os jogadores chineses, não acredito que eles vão conseguir aproveitá-las sabendo que suas famílias estão em perigo”

Um momento distração oferecido aos jogadores do Wuhan Zall foi a visita ao Santiago Bernabéu. Os membros da delegação puderam assistir ao clássico entre Real Madrid e Barcelona, que terminou com a vitória merengue por 1 a 0. O convite veio do próprio Florentino Pérez, com o auxílio de La Liga, que é parceira do Campeonato Chinês. Emilio Butragueño, antigo ídolo dos blancos e atual diretor de relações institucionais, recebeu os atletas para o tour no estádio antes que a bola rolasse.

“A atitude dos jogadores é admirável. Eles começaram a treinar sem saber quando a liga começará, lidando com problemas familiares à distância. Seria muito fácil desconectar de seu trabalho, mas eles estão dando uma lição espetacular de profissionalismo. Não acho que tantos de nós reagiriam da mesma forma nesta situação. Eles estão longe de casa há mais de dois meses, não puderam aproveitar o Natal com a família, estão falando apenas por telefone com seus parentes e veem que seus entes queridos não podem levar uma vida normal. Isso deve afetá-los psicologicamente”, comentou o técnico José González.

Para tentar passar o tempo e manter a motivação dos jogadores, o Wuhan Zall realizou alguns jogos-treino nas últimas semanas, assim como deu períodos de folga estendidos. A situação foi compartilhada por outros 14 clubes chineses que também estavam em pré-temporada e tiveram dificuldades para voltar para casa. Alguns deles prolongaram suas atividades no exterior, em países como Emirados Árabes, Tailândia e Japão – gradativamente afetados pela pandemia. Contudo, nenhum outro caso era tão drástico e representativo quanto em Wuhan.

A previsão inicial era de que o Wuhan Zall retornasse à China apenas em meados de abril, permanecendo em outra cidade do país antes de viajar a Wuhan. Todavia, o aumento de casos na Europa e o controle dos infectados na China antecipou os planos. Segundo dados da Universidade John Hopkins, a Espanha é o quinto país em número de casos, com 4,3 mil infectados. Ao todo, 122 pessoas morreram. Já a China declarou nesta quinta que a epidemia ultrapassou o pico no país. Embora sejam mais de 80 mil casos registrados, o número de novos infectados foi de apenas oito nas últimas 24 horas, cinco na cidade de Wuhan.

O Wuhan Zall retornará diretamente a Wuhan, ante a situação sob controle na cidade. Assim, a maior parte dos membros da delegação poderá reencontrar as suas famílias. “O problema, agora, está aqui na Espanha. Na China, foi praticamente erradicado”, declarou o técnico José González, à EFE. O Campeonato Chinês tem a previsão inicial de realizar sua primeira rodada a partir de 15 de abril. De qualquer maneira, o que menos importa neste momento é o futebol.

Um caso curioso é o de Daniel Carriço. O zagueiro acertou sua transferência do Sevilla ao Wuhan Zall em fevereiro, juntando-se ao elenco durante os treinamentos na Andaluzia. Naquele momento, sua decisão parecia um tanto quanto arriscada, mas o cenário mudou totalmente em cerca de um mês. “Hoje, a China está mais segura que a Europa. Não tenho medo de viajar para lá. Estivemos treinando até que o alarme pelo coronavírus desaparecesse totalmente. Podemos retornar tranquilamente a Wuhan e cada um retomará sua vida. Na China, a situação atual é menos preocupante que a do resto do mundo”, declarou o português, ao Tutto Mercato.

Carriço não nega que ficou receoso com a possibilidade de jogar em Wuhan, mas se tranquilizou a partir das informações contínuas: “No princípio, questionei um pouco o negócio, mas não pude negar. Antes, eu não sabia o que era o vírus. Passei vários dias me informando e o clube me tranquilizou. É certo que o problema rompeu em todo mundo, mas na China as coisas vão melhor. Wuhan tem cada vez menos enfermos e os novos casos são poucos”.

Carriço, por fim, defendeu também a suspensão dos campeonatos: “É fundamental conter a propagação do vírus de todas as formas, sem permitir que se expanda. Suspender as partidas é seguramente a melhor solução, considerando a quantidade de pessoas que vão aos estádios. Ou pela saúde dos jogadores, das pessoas da equipe… Os portões fechados ajudam, mas está claro que parar tudo é mais eficaz. A saúde pública deve estar acima do futebol ou de qualquer coisa”.

O aguardado retorno do Wuhan Zall à sua cidade-sede deverá acontecer neste sábado, segundo o jornal AS. E, em via contrária, os jogadores também passarão por procedimentos especiais após o período na Espanha. Porém, com o alívio de saber que estarão de volta para casa e se reencontrarão com seus familiares.

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