Só entre os dias 7 e 8 de janeiro, houve o ataque de mísseis iranianos a bases dos EUA no Iraque, a derrubada, por engano, de um avião com 176 passageiros no Irã e um terremoto no mesmo país. O que até parece roteiro de cinema pode ganhar ainda mais ação, com o fortalecimento de facções armadas e uma batalha de versões sobre o conflito. A isso soma-se um risco iminente, com ares de ficção científica, de ataques cibernéticos entre EUA e Irã.
Na prática, trata-se de tentativas virtuais de hackear sistemas de governos e empresas, com o fim de roubar, alterar ou eliminar informações ou levar ao mau funcionamento dos serviços, incluindo os militares e a saúde.
“O Irã não quer guerra com os EUA, mas deseja retaliação. Um ataque cibernético pode causar prejuízos de milhões de dólares e seria legítimo nessa lógica de o Irã ter interpretado (o assassinato de Soleimani) como ato de guerra”, avalia o doutor em relações internacionais Vinícius Vieira.
O primeiro movimento já aconteceu: no fim de semana após o ataque dos EUA ao general Qassem Soleimani, o principal estrategista do Irã, o site do Federal Depository Library Program (depositório de documentos públicos dos EUA) foi invadido por autointitulados “hackers do grupo de segurança cibernética do Irã”.
O conteúdo da página foi substituído por uma ilustração de Donald Trump recebendo um soco, acompanhada por uma mensagem que terminava em: “Essa foi apenas uma pequena parte da habilidade cibernética do Irã! Estamos sempre prontos”.
Foi uma ação sem maiores consequências aparentes, mas o governo norte-americano está atento a ofensivas mais graves. No dia seguinte ao damorte do general, o Departamento de Segurança Interna dos EUA publicou um boletim em que alerta: “O Irã é capaz de, no mínimo, conduzir ataques com efeitos temporários disruptivos contra infraestrutura importante”.
Um ataque cibernético importante não seria uma surpresa. Sim, seria o culminar de uma luta invisível que dura uma década.
Batalhas
Em 2010, o Irã foi obrigado a desacelerar seu programa de desenvolvimento nuclear após máquinas de enriquecimento de urânio pararem de funcionar. O motivo foi um vírus que invadiu o sistema da usina (a partir de um pen drive, presume-se). Embora nenhum dos governos tenha se declarado autor da investida, o entendimento comum é que ela tenha partido dos EUA e de Israel.
O ataque, hoje conhecido como Stuxnet (em referência ao nome do vírus) contribuiu para arrefecer os planos nucleares do Irã, pouco antes do acordo assinado pelo país em 2015 para diminuir a atividade na área. Além disso, criou terreno para o Irã fortalecer esforços na cibernética. “Ele ainda não está no ranking de maior poderes cibernéticos, mas está à frente da maioria das nações em estratégia e organização para uma guerra cibernética”, resume o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (Csis), dos EUA.
Ataques pontuais entre os dois países não pararam desde então – entre 2011 e 2013, por exemplo, hackers supostamente ligados ao governo iraniano atacaram instituições financeiras e o sistema hídrico próximo a Nova York, causando prejuízos milionários. Em junho de 2019, o ataque partiu dos EUA, desta vez contra sistemas bélicos do Irã. “Os alvos principais (de futuras ofensivas do Irã) são os que atingem infraestrutura crítica, como água, energia, petróleo e saúde”, pontua Thiago Bordini, diretor de inteligência cibernética e pesquisa do Grupo New Space.
Já Wagner Meira, professor de ciências da computação, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), acha improvável que esses sistemas importantes, consolidados antes da internet, sejam duramente atingidos. Mas lembra: “Falamos de ataques já ocorridos, mas o próximo não é igual ao que já aconteceu. Como se antecipar ao que está por vir?”.
“Lobos Solitários”
Para o historiador Andrew Traumann, especialista em Oriente Médio, atentados de “lobos solitários” são improváveis. Ações do tipo, como as dos homens-bomba, costumam estar relacionadas a grupos sunitas, tal qual a Al-Qaeda, diferentemente dos xiitas do Irã: “No começo dos anos 2000, na época da Guerra ao Terror, a estratégia desses grupos era atacar aliados dos EUA, como a Espanha, que havia enviado tropas para o Iraque e viveu atentados no metrô”.
Nesse cenário, ele acredita que o Brasil não precisa temer ataques do tipo e nem cibernéticos, pois o apoio a Trump é apenas no discurso. “Somos periféricos. Não vejo o Brasil como alvo apenas por declarações diplomáticas. Outra coisa seria se houvesse guerra e ele enviasse tropas”.
Com o apoio de Irã, as facções se fortalecem contra EUA
A princípio, o Irã sai vitorioso do conflito após a morte do general Qassem Soleimani, analisa o doutor em relações internacionais Vinícius Vieira. “Ela trouxe ganhos políticos para o regime iraniano. A busca por vingança vai unir muito os xiitas”, avalia. Eles são um ramo da religião islâmica, seguido pelo Irã e pelo atual governo iraquiano.
Quem também pode ganhar com essa história são as facções apoiadas pelo Irã no Oriente Médio – o país atua nos conflitos na Síria, por exemplo. Poucos dias depois da morte de Soleimani, facções armadas do Iraque apoiadas pelos iranianos conclamavam uma “frente anti-americana”. Mas isso não significa necessariamente que vão atacar os EUA em si – a estratégia de expansão de poder do Irã tem sido as “guerras por procuração”, em que o país financia grupos armados contra o inimigo em vez de participar diretamente do conflito.
“Ele desenvolveu um ‘manual’ para implementar sua estratégia regional. Empoderou a Guarda Revolucionária, como as Forças Quds (comandadas por Soleimani), para construir facções armadas pró-iranianas em movimentos políticos com influência e capacidade crescentes”, resume a Soufan Center, ONG de análise de segurança fundada por um ex-agente do FBI.
Assim é no Líbano, em que o Irã formou, desde os anos 80, o que planeja fazer de modelo para os demais grupos que apoia: o Hezbollah, formado como uma resistência à ocupação israelense que tentava expulsar palestinos da região. Hoje, converteu-se em uma força política com cadeira no Parlamento libanês – e alcunha de “terrorista”, na visão de EUA e Israel.
No meio do caminho entre os países está a Síria, mais um foco das facções. O presidente sírio Bashar al-Assad é de uma família historicamente aliada aos iranianos e conta tanto com tropas oficiais do Irã quanto com facções financiadas por ele contra os rebeldes, que combate desde 2011. No Iraque, onde Soleimani foi morto, estima-se que existam 100 mil milicianos (soldados não profissionais) xiitas, a maior parte deles apoiada por iranianos.
Visão do conflito também é campo de batalha
Enquanto os EUA se referem a Soleimani como terrorista, para os iranianos ele é o herói que combateu o Estado Islâmico na Síria e o expulsou do Iraque. Os EUA ainda não apresentaram provas das ofensivas “iminentes” que teriam justificado a morte do general. Na semana desde o ataque, a narrativa de Trump mudou – em entrevistas, ele afirmou que Soleimani merecia ser morto pelo “seu passado”.
Para iranianos, a ameaça constante de guerras, especialmente contra os EUA, é histórica. Esse receio é uma “herança civilizacional”, um legado transferido de mãe para filha, define a escritora americana-iraniana Azadeh Moaveni em um artigo no “The New York Times”.
Os ânimos haviam se acalmado desde a assinatura de um acordo em 2015, em que o Irã se comprometeu a frear seu programa nuclear em troca do fim de sanções econômicas impostas pelos EUA nos anos 80 – como o impedimento de participar do mercado internacional de petróleo.
Quando Trump abandonou o acordo, sobreveio a crise: em 2019, previu-se uma retração de 9,5% no PIB iraniano, que vinha crescendo após o tratado, e a inflação passou dos 9% de 2017 para mais de 30%. Trump anunciou mais sanções, e, em contrapartida, o Irã já não se compromete a segurar sua produção nuclear – e pode aumentar sua influência no Oriente Médio se as tropas norte-americanas acabarem deixando a área.
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Deputada estadual pelo partido Novo, afirmou que ação tem o objetivo de melhorar a condição de vida da população
Na coluna dessa semana, um pouco dos bastidores da coluna da médica e psicanalista Soraya Hissa que entra em 2020 na segunda temporada.