A final da Copa do Rei vem para exaltar um lado do futebol espanhol que deveria ser bem mais valorizado

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O futebol atravessa um processo paulatino de “superdimensionamento”. As ideias de se criar uma Superliga Europeia que reúna a nata da nata não são à toa. Em uma época na qual só a Champions League parece ser suficiente para satisfazer as ambições de muitos clubes, sejam elas esportivas ou financeiras, as demais competições tantas vezes se veem relegadas à insignificância de um “prêmio de consolação”. E no futebol espanhol, onde o gigantismo de Real Madrid e Barcelona sufoca os times ao redor, o exagero se torna mais escancarado. É como se todo o restante da estrutura estivesse a serviço de ambos os devoradores de planetas.

Muitas vezes, infelizmente, acaba sendo assim. Mas não precisa, necessariamente. E em uma temporada na qual fica claro que o dinheiro não será a solução para tudo, o futebol espanhol nos lembra que possui muitas mais histórias para contar. O glamour ao redor de Barça e Real, por vezes Atleti, não suprime o que se vive em outros tantos estádios do país. O título mais incensado do ano na Espanha, muito provavelmente, será uma Copa do Rei disputada entre Athletic Bilbao e Real Sociedad em Sevilha. Uma competição que permite o olhar além.

E o protagonismo dado ao clássico basco se torna ainda mais emblemático em uma semana na qual o Santiago Bernabéu recebeu o encontro entre Real Madrid e Barcelona. Sim, os gigantes fizeram um jogo bastante interessante por La Liga. Os goleiros acumularam defesas fantásticas, os garotos merengues apresentaram seu poder de decisão e a equipe de Zinedine Zidane encontrou sua solução para uma vitória que, se não decide tanto, mostra quem atravessa o momento mais confiável entre os dois gigantes. Porém, pouco tempo bastou para que os jornais deixassem de lado El Clásico e passassem a estampar manchetes com o dérbi basco.

O futebol espanhol possui esse caráter, por mais que tantas vezes permaneça eclipsado: ele tem um grande poder de contar histórias locais. A identidade dos clubes no país, até mesmo pelo próprio caráter nacional difuso, confere uma grande importância ao pertencimento. Ao longo das décadas, sempre foi necessário lidar com o gigantismo de Real Madrid e Barcelona, por mais que o contexto fosse outro. Só que, em pedrinhas miúdas, nunca deixou-se de cultivar esse arraigamento em outros cantos.

Todavia, entre taças de Champions, e contratações galácticas, e expansão da marca, e futuramento na casa das centenas de milhões de euros, perde-se de vista com mais facilidade essa outra dimensão do futebol espanhol. Menos gloriosa aos olhares de outros cantos do mundo e menos interessante ao próprio jogo de poder, mas mais importante à cultura de estádio dentro da Espanha. E, neste sentido, a atual edição da Copa do Rei veio a calhar.

Primeiro, porque a competição nacional voltou a conferir o verdadeiro valor a essas pequenas histórias. Com um regulamento que oferecia menos privilégios aos favoritos na disputa, foi possível que diversos clubes lutassem por seu espaço e contassem as suas próprias sagas. O Mirandés acabou se tornando o maior exemplo, ao alcançar as semifinais, mas outros tantos times menores puderam brigar por seu lugar ao sol. E, como se não fosse suficiente, o destino ainda garantiu uma final especialíssima. Dois clubes com este caráter local, com esse arraigamento, poderão protagonizar o maior clássico de sua história. Um dérbi basco que a Espanha toda parará para ver.

Em termos de rivalidade, Athletic Bilbao e Real Sociedad nem fazem um clássico tão ferrenho. Pelo contrário, a história marginalizada dos bascos em meio à ditadura franquista e o próprio orgulho fomentado por ambos os clubes os tornam muito mais irmãos. São dois bastiões da cultura basca e do senso de pertencimento da população regional, que se uniram em momentos difíceis de repressão. Mas que, diante de uma oportunidade nestas proporções, não deixarão de oferecer o seu máximo pela conquista única na Copa do Rei.

Athletic Bilbao e Real Sociedad até já disputaram uma decisão da competição nacional. Foi em 1910, em uma das primeiras edições da Copa do Rei. Recém-fundados, os txuri-urdin sequer puderam adotar o seu nome oficial no torneio, por não “serem antigos o suficiente”. Assim, emprestando a identidade do Vasconia, perderam a final ante os leones por 1 a 0 em San Sebastián. Foi a primeira decisão em que o Athletic vestiu seu tradicional uniforme alvirrubro. E, apesar dos ânimos exaltados nas tribunas, com os bilbaínos “loucos de alegria” e os donostiarras “protestando com pedras”, não foi isso que desembocou numa rivalidade amarga.

Ao longo das décadas, Athletic e Real se preocuparam muito mais com o esforço em conjunto para preservar a identidade basca do que com os anseios pelos títulos em comum. Afinal, em um contexto de supressão da cultura local, o futebol se tornou em rara válvula de escape, mesmo que também sofrendo sanções. Juntos, os dois clubes passaram a privilegiar os jogadores bascos, embora os txuri-urdin tenham se aberto com o tempo. Juntos, os dois capitães levaram a campo a bandeira do País Basco, num enorme símbolo da contraposição ao final da ditadura franquista. Juntos, os dois elencos costumavam confraternizar e dividir a mesa do jantar quando dominavam o futebol do país, durante meados da década de 1980.

Entre 1981 e 1984, o País Basco faturou quatro troféus consecutivos do Campeonato Espanhol. A Real Sociedad levou primeiro o bicampeonato, nos únicos títulos de sua história, antes que o Athletic Bilbao repetisse o feito e encerrasse um jejum que se aproximava das três décadas. Nem neste momento, com certa concorrência e confrontos diretos nas rodadas finais, a rivalidade floresceu em um sentido tóxico. Permaneceu um lado de confrontar os centros do poder e valorizar os feitos locais. Nesta época, os bilbaínos ainda levaram seu 23° título da Copa do Rei em 1984, antes que os donostiarras faturassem sua segunda taça em 1987. Os últimos, até que algum dos lados quebre o hiato nesta temporada.

Obviamente, não dá para dizer que a relação entre Athletic Bilbao e Real Sociedad manteve-se apenas saudável esse tempo todo. A influência do dinheiro também pesou e até gerou os seus atritos, sobretudo pelas necessidades de mercado dos leones. Com as restrições aos jogadores nascidos no País Basco, revelações dos txuri-urdin se transformaram em objetos de desejo dos bilbaínos e aconteceram alguns casos de “aliciamento” – o mais recente, envolvendo a mudança de Iñigo Martínez, de Anoeta a San Mamés. Mas nada que contaminasse tanto assim o clima das arquibancadas, onde as confraternizações seguem comuns e os torcedores mesmo se misturam em pleno clássico.

A final da Copa do Rei oferecerá uma nova realidade em La Cartuja. Ainda será uma ocasião para celebrar o orgulho basco e a história de ambos os clubes. No entanto, somente um poderá sair vencedor, e nenhum dos lados desejará desperdiçar a chance de botar a faixa no peito – especialmente quando a grandeza anda um tanto quanto adormecida. Até por isso, as atenções (e as tensões) tendem a aumentar.

A Real Sociedad tentará comprovar a qualidade de seu projeto de investimento em jovens. Os txuri-urdin montaram um elenco de enorme potencial, mesmo que nem todos os atletas pertençam ao clube, e exibem um futebol ofensivo. A empolgação ao redor do trabalho de Imanol Alguacil é evidente e poderá consagrar diversos talentos que ganham o merecido reconhecimento em Anoeta, menções especiais a Martin Odegaard e Mikel Oyarzabal. Por aquilo que tem jogado, a Real é favorita.

O Athletic Bilbao, por outro lado, apresenta um futebol muito mais aguerrido – como manda a sua própria tradição. Não deixa de possuir talentos arrebatadores, a exemplo de Iñaki Williams, mas depende de um estilo de jogo muito mais centrado na voracidade dos contragolpes e na solidez defensiva. A tradição pesa mais aos bilbaínos, inclusive pela maneira como acumulam campanhas relevantes na Copa do Rei. Foram três vices desde 2009, todos eles em decisões perdidas para o Barcelona. Chegou a hora da espera terminar, sobretudo quando pode premiar com uma taça a última temporada de Aritz Aduriz, um ídolo histórico em San Mamés.

Entre os elementos culturais e o que se joga em campo, a final já ocupa um lugar privilegiado no calendário. Mais de 40 mil bascos devem lotar as arquibancadas do Estádio Olímpico de Sevilha em 18 de abril, enquanto o maremoto nas ruas do País Basco tomará proporções inéditas. É capaz que Real Madrid ou Barcelona voltem à decisão no próximo ano, quem sabe o Atlético. Mas, neste momento, a ocasião vem a calhar para reforçar um lado do futebol espanhol que é tão legal sem ter montanhas de dinheiro ou os maiores craques.

Talvez o processo de uma Superliga Europeia ou de uma Champions cada vez mais selecionada seja mesmo irreversível. Contudo, o futebol não depende apenas disso. E, ressaltando as raízes, a Copa do Rei valoriza um lado do futebol que nunca morrerá, embora não precise ser sempre tão desprivilegiado. Através de Athletic e Real Sociedad, a Espanha reaprende um bocado das virtudes de sua cultura. Pode perceber que, para ter um campeonato mais interessante, não deve proteger apenas suas potências. Neste sentido, a temporada é de alento.

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